Quando pensamos nas inteligências e assistentes virtuais mais conhecidas, como Alexa, da Amazon; Siri, do iPhone; e até mesmo Bia, do Bradesco; Lu, da Magazine Luiza; e Nat, da Natura, é possível notar um ponto em comum entre elas: todas possuem características femininas. A Siri, por exemplo, diz que não tem gênero, quando perguntada sobre seu sexo, mas a voz que responde aos comandos dos usuários é feminina, não há dúvidas quanto a isso. Gerente de engenharia de software no Shell Box – Raízen, Fabiane Araújo conta que a Amazon, uma das precursoras no segmento, diz ter escolhido uma voz feminina para a Alexa baseado em pesquisas realizadas pela própria empresa, que apontaram que as vozes femininas são mais agradáveis e acolhedoras, o que facilitaria uma conexão emocional.
No entanto, isso tem uma justificativa cultural e social, não biológica. – Há uma percepção do lugar da mulher em uma divisão sexual do trabalho e do cuidado como exclusivamente feminina – explica Marusa Silva, doutora em Sociologia Política e professora de Sociologia da Universidade Cândido Mendes. Ou seja, se profissões administrativas como auxiliares, secretárias e assistentes costumam ser exercidas por mulheres, os fabricantes de assistentes digitais serão influenciados por essas expectativas sociais, fazendo com que a tecnologia reproduza esses estereótipos de gênero. “Além disso, o que se espera de uma assistente virtual é que ela seja amigável e não ameaçadora; prestativa e não dominante. Comportamentos e características que a sociedade projeta nas mulheres”, acrescenta a professora.
“O gênero é produzido culturalmente. Homens e mulheres são socializados a partir de referências de gênero socialmente aceitas. É assim, por exemplo, que a maioria das pessoas relaciona as mulheres ao cuidado, à maternidade e à delicadeza. A prevalência de vozes femininas nas inteligências artificiais, de certo modo, reforça o estereótipo da mulher sempre ‘à disposição’, respondendo às indagações passivamente. Essas inteligências artificiais são programas para performar certos constructos do gênero feminino e normalizam percepções sociais em torno do papel da mulher.”
ATÉ ELAS SOFREM ASSÉDIO
Por terem características e, às vezes, aparência feminina, as assistentes virtuais chegam até a sofrer com problemas que afetam as mulheres, como o assédio. O Bradesco precisou atualizar as respostas da Bia, utilizada para ajudar o usuário com dúvidas frequentes, para combater o assédio moral e sexual que ela sofria dos clientes. “Dessa forma, agora a inteligência artificial está pronta para dar respostas coerentes sobre o posicionamento em relação ao assédio”, conta Fabiane. A mestre em Sistemas Aplicados à Engenharia e a Gestão ainda informou que a UNESCO publicou um relatório intitulado “I’d Blush If I Could”, para examinar a questão da desigualdade de gênero na tecnologia de inteligência artificial, incluindo assistentes virtuais como a Alexa: – O relatório afirma que a escolha de uma voz feminina para assistentes virtuais pode reforçar estereótipos de gênero e perpetuar desigualdades de gênero. O relatório também recomenda que as empresas e governos encerrem a prática de fazer assistentes digitais femininos por padrão. As Big Techs, como chamamos as grandes empresas de tecnologia, têm disponibilizado uma segunda voz masculina, mas a feminina ainda vem por padrão de fábrica – ressalta.
O FUTURO É LOGO ALI
Para garantir uma representação mais equitativa de vozes nas inteligências artificiais, Fabiane acredita que o tema precisa ser abordado em fóruns mais amplos, de modo que a comunidade de tecnologia perceba essa questão e possa realizar mudanças. “Acredito que precisamos de grandes atitudes, para realmente termos resultado”, pontua. Hoje, as discussões ainda são tímidas, com poucos artigos e rodas de discussões sobre o tema. No entanto, a engenheira mantém boas expectativas: “Como mulher, que trabalha há 14 anos no segmento de tecnologia e só viu movimentos em prol da inclusão das mulheres acontecerem nos últimos cinco anos, mas de forma acelerada, sinto esperança quando olho para os próximos anos, de que teremos um futuro diferente.” Para que haja alguma mudança nesse cenário, Marusa acredita que o caminho é através de mais diversidade na indústria tecnológica. “Não é novidade que esse nicho tem uma maior presença masculina. Nas maiores empresas da área nos Estados Unidos, as mulheres ocupam uma em cada quatro vagas”, ressalta.
“A história de mulheres pioneiras que abriram caminho na ciência, na tecnologia, nas artes foi diluída, ofuscada, passaram por um processo de apagamento. É preciso capturar essas contribuições e garantir que os modelos de AI possam, a partir disso, criar resultados mais equitativos.”